O presságio de Machado de Assis
É comum ouvirmos muitas pessoas ligarem os acontecimentos naturais, muitos desses bastante catastróficos, com o que eles entendem por “ordem da providência”, correspondendo a conceitos religiosos profundamente alicerçados, de maneira insondável em muitos locais. Explicar cientificamente para muitos religiosos carolas a razão pela qual os trovões ribombam, devido as descargas elétricas atmosféricas, é quase um grito no deserto tragado pela crença na interferência “divina”.
Que entendamos (?) isso, o que não quer dizer reproduzirmos a questionável “punição de deus” sobre os seres humanos quando, na verdade, os motivos pelos quais as temperaturas na Terra vêm aumentando, causando o derretimento das calotas polares e, consequentemente, provocando a subida do nível dos oceanos, são provenientes das nossas próprias ações em relação a natureza.
O tão repetido e já quase negligenciado aguaceiro tempestuoso caído indesculpavelmente sobre a região serrana do interior fluminense – não esqueçamos também do de Minas Gerais – tratou de ser justificado pelos diversos discursos da área científica, desde meteorologistas até geógrafos, ladeados pelas argumentações cheias de esperanças dos representantes de cargos públicos, o que nutriu mais ainda a defesa do “já que Deus quis assim...” externado por faces chorosas e esquálidas focadas pelas câmeras televisivas.
Entre explicações momentâneas, encontrar uma pérola é canalizar satisfação pela luz relevante que ela contém. E no nosso caso, a preciosidade carrega o título de “Esaú e Jacó”, livro escrito por Machado de Assis e publicado em 1904. Mas em que uma obra literária tem a ver com as aludidas tempestades de janeiro de 2012?
Primeiramente, o imortal escritor, nascido no morro do Livramento, Rio de Janeiro, em 1839, publicou aquela obra durante a gestão do presidente da república Rodrigues Alves (1902-1906), porém envolveu parte dos ambientes fictícios nos governos militares do apnéico marechal Deodoro da Fonseca (1889-1891) e do “marechal-de-ferro” Floriano Peixoto (1891-1894).
Eternizando protagonistas, dialogando com o leitor, analisando a sociedade da sua época e perpassando o pessimismo, dentre outras características da corrente literária do realismo-naturalismo, Machado de Assis rotiniza o folhetim entre a capital fluminense e Petrópolis, a “cidade de Pedro” – segundo e último imperador do Brasil –, onde Pedro e Paulo, filhos de abastada família, disputam o amor de Flora, apesar de as ambições dos gêmeos por suas carreiras médica e advocatícia, respectivamente, falarem mais alto.
Num trecho pequeno de “Esaú e Jacó”, alusão aos irmãos bíblicos, tem-se a impressão pressagiadora registrada pelo “bruxo” escritor quanto as chuvas serranas, mais exatamente as de Petrópolis. Lê-se no diálogo:
“Flora sorriu, de um sorriso pálido, e o conselheiro percebeu algo que não era tristeza de passagem ou de criança. Novamente lhe falou de Petrópolis, mas não insistiu. Petrópolis era a agravação do momento atual.
- Petrópolis tem o mal das chuvas, continuou. Eu, se fosse a senhora, saía desta casa e desta rua; vá para outro bairro, casa amiga, com sua mãe ou sem ela...”
Embora este fragmento esmiúce o febricitante estado de flora, o qual resultou no seu falecimento logo depois, o “mal das chuvas” dito pelo conselheiro Aires significaria, ao mesmo tempo, atiçamento febril e ameaça à quem habitasse “casa” e “rua” com periculoso grau de risco motivado pelas águas torrenciais desabadas das nuvens.
Querendo ou não, Machado de Assis atentava para os resultados das chuvas serranas daquela parte fluminense ao “convidar” a república a refletir atuação responsável e menos centralizadora nas suas quase duas décadas, desde a transição do gabinete monárquico, presidido pelo visconde de Ouro Preto, para o governo provisório do marechal alagoano.
Caberá notarmos, caros leitora e leitor, o quanto o passado, seja ele bem ou mal estruturado, refletirá, sem dúvida alguma, no presente.